Nas empresas familiares, a transição de gerações prevê a mudança de um processo decisório individual para um novo modelo, muitas vezes ainda não experimentado, que considere os interesses coletivos
É sabido que qualquer nação madura e democrática que se preze depende de fóruns e instâncias adequados para que as discussões se desenrolem de maneira produtiva, eficaz e, acima de tudo, legítima. É notório, afinal, que o bom funcionamento de um país não depende da mera elaboração de regulações. Deve-se definir quem as aprova e implementa. Saber a quem recorrer, em caso de não cumprimento, também é essencial. A mesma lógica vale para o mundo dos negócios.
No âmbito da família empresária, especificamente, são necessários protocolos e normas claras e instâncias de poder diversas. Isso significa a criação de uma estrutura de governança, sem a qual todo o esforço empreendido no planejamento da sucessão e da continuidade pode cair por terra. “Acompanhando a evolução e o amadurecimento da família empresária, os sistemas decisórios passam de um modelo individual, centrado na figura do dono, para uma relação societária, em que o coletivo predomina e os interesses de todos os envolvidos sejam devidamente representados”, afirma Luiz Carlos Vaini, professor da PUC-SP e conselheiro de empresas familiares. Tais relações, vale ressaltar, precisam ser construídas, não herdadas.
Fóruns diversos compõem uma estrutura de governança, contribuindo de forma decisiva para a profissionalização da família. Os mais conhecidos são o conselho de família, o conselho societário e o conselho administrativo, por meio dos quais é possível distribuir direitos e responsabilidades, estabelecer processos decisórios, criar canais interdependentes de comunicação e fortalecer a educação dos sócios, entre outras tantas atribuições.
As governanças familiar e societária cuidam das questões relativas à família e ao patrimônio, respectivamente, e pressupõem diálogo constante com o conselho de administração. “Seu trabalho é silencioso, mas o impacto de suas decisões costuma ser determinante”, diz Vaini. De acordo com o especialista, o exercício dessa governança – “invisível” aos olhos do mercado – começa em casa, com cada membro da família empresária enxergando se como sócio, e não como dono do negócio, com o respeito aos canais legítimos de comunicação e às fronteiras entre os diferentes papéis exercidos por cada um dos envolvidos, executivos familiares ou não.
Já o conselho de administração trata de assuntos relacionados exclusivamente aos negócios. Por isso mesmo é considerado o sistema mais “visível” da governança. Previsto pela legislação para empresas de capital aberto e de economia mista, é recomendado pelas melhores práticas de governança, no Brasil e no mundo, para companhias de qualquer porte e segmento.
MATURIDADE E COMPROMETIMENTO É muito comum ver as famílias empresárias iniciarem sua trajetória rumo à construção da estrutura de governança por meio de um conselho que acumula funções diversas. Ou então concentrar suas decisões nas mãos do presidente. Mais tarde, com o amadurecimento da sociedade e o crescimento da família, surgem as condições para o desenvolvimento de uma estrutura mais complexa e completa. Foi assim, por exemplo, no laboratório Aché. Ao longo de sua trajetória de mais de quatro décadas, a organização foi comandada por três famílias que, há cerca de oito anos, decidiram adotar práticas relacionadas à governança.
A primeira providência foi promover a sucessão dos membros das três famílias da direção, incluindo os fundadores, encaminhando parte deles para o conselho administrativo. Todo o processo foi orientado por uma consultoria especializada, que ajudou na revisão de toda a estrutura organizacional e na elaboração da nova dinâmica de trabalho e de comportamento dos membros das famílias. “Imagine a dificuldade, em um negócio familiar, de as pessoas deixarem de ser dirigentes e passarem a atuar como acionistas”, diz José Luiz Depieri, vice-presidente do conselho administrativo da Aché. “E ainda dizer aos empreendedores como se comportar em uma reunião, policiando-se para não agir mais como antes.”
Para completar, explica ele, o processo de descentralização da gestão teve início em 2002, logo após a posse do presidente Lula e com o dólar beirando os R$ 4. O executivo afirma que a transição só foi possível porque os membros da família estavam realmente comprometidos a deixar de “mandar” para passar a “compartilhar”. O resultado foi uma tremenda vantagem competitiva. “Estamos à frente de nossos concorrentes, que ainda se encontram em estágios anteriores de evolução no que se refere à governança”, acrescenta Delpieri. “Como o processo é vivo e contínuo, estamos planejando a criação de três novos comitês – marketing, estratégia e finanças/ risco –, que servirão de suporte para essa nova estrutura.”
ABERTURA E PARTICIPAÇÃO
Dez entre dez especialistas destacam as competências das lideranças que, além de aprimorar sua capacidade de diálogo e negociação, devem acompanhar a tendência participativa dos novos processos decisórios. Há cinco anos, quando resolveu fazer a transição para um modelo mais aberto, organizado e democrático de gestão, a Marilan, fabricante de biscoitos com sede em Marília, interior de São Paulo, optou pela criação dos conselhos de acionistas e administrativo. Com o objetivo de planejar e analisar resultados, revisar orçamentos e discutir assuntos estratégicos do grupo, seus sete membros (três da terceira geração familiar, três da segunda e um conselheiro independente) se reúnem periodicamente.
O trabalho é apoiado por comitês específicos, também mistos, criados para atender às demandas que vão surgindo. Eventualmente, consultores são convidados a participar, trazendo às reuniões experiências e vivências externas. Outra providência referente à governança foi o estabelecimento de regras para o ingresso dos membros das famílias em qualquer cargo corporativo. “Todos precisam passar pelos mesmos processos seletivos de quem não é da família”, afirma José Rubis Garla, presidente do conselho de acionistas.
Como se vê, a evolução da governança não segue uma cartilha pré-definida. Sua dinâmica não pode – nem deve – ser engessada. Além de uma abordagem específica, suas instâncias e seus mecanismos de funcionamento variam de caso para caso, dependendo das características, dos objetivos e dos interesses da organização. “Importante mesmo é gerar compromisso de todas as partes e considerar três sistemas específicos – empresa, família e patrimônio –, que exigem estruturações formais e, principalmente, a mesma atenção e os mesmos cuidados”, finaliza Vaini.
CADA UM, CADA UM
Conheça as características e os objetivos das principais instâncias da governança:
Conselho de família (FAMÍLIA): fórum no qual as questões familiares (interesses, conflitos, expectativas, crescimento, história, valores, ética, conduta, educação dos familiares e celebrações) são discutidas e administradas. Aborda, entre outras coisas, os valores, a visão e o propósito da família, promove as relações familiares e o vínculo entre seus membros, formaliza papéis e responsabilidades, além de pensar nas futuras gerações, por meio de programas de formação e desenvolvimento.
Conselho societário (PATRIMÔNIO): órgão que representa o controle do capital da empresa, exercido pelos sócios como um todo ou por um grupo formado por parte das famílias sócias. Administra os interesses dos controladores na gestão do capital, nas participações societárias e nas estratégias corporativas das empresas.
Conselho de administração (EMPRESA): voltado exclusivamente para os negócios, a partir de uma visão estratégica e de parâmetros de gestão corporativa. Cabe ao conselho administrativo definir diretrizes, aprovar planos estratégicos, propor as principais políticas da empresa, avaliar o desempenho econômico da organização e de seus executivos, entre outras ações.
EM MEIO AO DESCOMPASSO
Pesquisa realizada pela höft – bernhoeft & teixeira com sócios e membros de 170 famílias empresárias em todo o país revelou uma forte tendência: privilegiar práticas de governança ligadas à EMPRESA, em detrimento de outros dois sistemas importantes, a FAMÍLIA e o PATRIMÔNIO, o que representa um grande obstáculo para a continuidade. Veja outras conclusões interessantes do levantamento: 89% das famílias empresárias não contam com qualquer instrumento formal para administrar eventuais conflitos e divergências; 82% não demonstram visão de futuro; 79% não formalizaram protocolo societário que regule as relações entre família e empresa; 58% das empresas estão em sua segunda geração; 40% das famílias empresárias que se encontram no período de transição da primeira para a segunda geração parecem estar sob a liderança ou a forte influência de seus fundadores; apenas 7% possuem um planejamento de sucessão e continuidade com a participação de todos os envolvidos.
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